O sexo do diploma As mulheres agora sairão da escola com o grau ou profissão correspondente ao sexo registrado no diploma: doutora, engenheira, mestra, bacharela...
Adriana Natali
As mulheres são maioria no ensino superior brasileiro. Segundo o Censo da Educação Superior, do MEC, mais da metade (57%) dos quase 6,4 milhões de universitários do país é formada pelo público feminino. A força da mulher nessa área deve ganhar visibilidade com a lei, sancionada em 3 de abril, que determina o uso, em diplomas, da flexão de gênero para nomear profissão ou grau.
A presidenta Dilma Rousseff transformou na lei 12.605 o projeto 6.383 de 2009, que por sua vez teve origem em outro projeto de lei, de 2005, de autoria da então senadora Serys Slhessarenko. Segundo a lei, as instituições de ensino públicas e privadas devem expedir diplomas e certificados com a flexão de gênero correspondente ao sexo da pessoa diplomada, ao designar a profissão e o grau obtido. O artigo 2º da lei indica que as pessoas já diplomadas podem requerer, de graça, emissão de seus diplomas com a correção.
Mal nasceu, a lei causa alvoroço. Alguns especialistas consideraram a iniciativa um erro, por confundir o título com o tratamento à pessoa. Em parte, porque usar o gênero masculino para denominar a profissão ou o grau obtido por mulheres é considerado uma tradição do idioma. A pessoa (mulher ou homem) recebe o título de "doutor", mas depois, se for o caso, é chamada de "doutora". A discussão talvez se deva ao fato de o título acadêmico flutuar no discutível domínio do gênero neutro, representado em português pela forma masculina.
Na justificativa da senadora para seu projeto de lei, entretanto, a prática revelaria antes a resistência de um preconceito. A iniciativa visaria, assim, dar um passinho em direção à igualdade de gêneros. Outros já foram dados. O Palácio do Planalto e suas agências de notícias, por exemplo, adotaram o feminino "presidenta" nas referências a Dilma. Escritores e pesquisadores de vários lugares do mundo têm adotado a mesma prática como política de valorização feminina.
Autoestima
Para Antonio Carlos Xavier, professor de português e linguística da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a curto prazo a lei pode passar despercebida devido ao recente acesso que a brasileira tem ao ensino superior. A médio e longo prazos, no entanto, a lei pode representar um indicador de autoestima para as profissionais brasileiras. A presidenta Dilma Rousseff: sanção a lei que obriga a expedição de diplomas e certificados com flexão de gênero– A lei instaura um princípio da flexibilidade. Juntamente com a tolerância, a flexibilidade é ingrediente essencial à sobrevivência pacífica entre homens e mulheres de diferentes classes sociais, ideologias, etnias e religiões sobre um mesmo espaço. As grandes mudanças começam com pequenas atitudes. Estas passam pela língua sem a qual aquelas jamais aconteceriam - avalia Xavier.
Professora de português da Universidade de São Paulo, Zilda Aquino concorda com a sanção da lei.
– Numa sociedade machista como a nossa, usa-se só o nome masculino mesmo ao referir o feminino. É apagamento da mulher, sim. Neste século 21, as mulheres já conseguem dirigir empresas como a Petrobras e comandar o país. A lei promove e protege a mulher - afirma.
Facilidade
Há divergências quanto ao peso dado à lei. Paulo Luis Capelotto, procurador aposentado e professor de Direito Internacional, lembra que as profissões são elencadas pelas secretarias da Educação pelo gênero masculino, não por exclusão ou machismo, mas para facilitar o uso dos termos.
– O artigo 5o da Constituição fala sobre igualdade entre homens e mulheres. A sociedade mudou, a estrutura familiar mudou. O próprio Estado prefere transferir imóveis populares à mulher. Isso demonstra a importância e a responsabilidade dela. A lei só se justifica se for um anseio da sociedade, se vai ao encontro da vontade popular - explica.
Para o gramático Evanildo Bechara, a lei comete enganos de teoria gramatical.
– O gênero do substantivo é inato. Há um animal feminino que se chama "gata" e um masculino que se chama "gato". "Cobra" se aplica tanto a machos quanto a fêmeas. Garanto que a presidente não foi bem assessorada por especialistas em teoria gramatical. Essa lei confunde o título com o uso do gênero. Pela tradição, o masculino engloba os dois. Quando digo: "Almocei na casa de meus tios", tanto me refiro a tios como a tias. O masculino é usado nos diplomas porque engloba o feminino, seguindo a tradição da língua - diz Bechara.
Uso popular
Segundo Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos, do departamento de português da PUC-SP e do Centro de Comunicação e Letras do Mackenzie, a lei contraria o desenvolvimento da língua, em que alterações são sempre resultado do uso popular.
– A tradição fixada pelo uso e pela norma aponta para o registro "doutor", "mestre", quando se trata do título. Quando nos dirigimos à pessoa que porta o título, usamos a marca de gênero, como em "doutora Sônia". Mas ao afirmarmos o título de Sônia, dizemos "doutor em linguística, mestre em língua portuguesa, chefe do setor X, diretor da empresa Y" e assim por diante. Dessa maneira, se a norma linguística é o uso relativamente estabilizado em uma língua, deve-se esperar o desenvolvimento natural do idioma, sem que se criem leis para determinar aquilo que não deve ser determinado aleatoriamente - diz a professora Neusa Bastos.
Histórico
Márcia Molina, doutora em linguística e semiótica pela USP e coordenadora dos cursos de licenciatura da Unisa, diz que discussões sobre o gênero de certas palavras remontam, no Brasil, ao final do século 19, início do 20, quando ainda não havia expressões para designar funções até então nunca exercidas por mulheres. O uso do feminino para "presidente" foi alvo de discussões já naquela ocasião, porque a regra geral de flexão nominal informa que os substantivos terminados em o fazem o feminino em a. Em alguns casos, isso ocorre nos terminados em e, como "elefante/elefanta".
– "Presidente" é palavra de formação latina, que oculta em sua origem uma designação verbal. "Presidente", o que preside. "Residente", o que reside. Mas essa origem se perdeu. Assim, o que temos na memória hoje são os substantivos terminados em e. Como em "elefante", nada obstaria usarmos "residenta", embora soe estranho para muitos - avalia a professora.
Necessidade
O filólogo Manoel Mourivaldo Santiago Almeida, da USP, avalia que a lei apenas ampara uma necessidade de comunicação já solucionada no cotidiano brasileiro.
– A lei apenas normatiza, no papel, para passar a valer também no papel, o que já é norma na prática cotidiana. Quer dizer: agora, amparadas por lei, as instituições formadoras podem escrever, nos diplomas e certificados que emitem, "doutor fulano" ou "doutora fulana". Assim como já observamos, no dia a dia, quando as pessoas do sexo masculino ou feminino são tratadas pelo título que obtiveram ou pelo nome da profissão para a qual estudaram.
Há quem insista, no entanto, que se trata de lei apenas desnecessária por se dedicar a assunto trivial e dispensável. Como disse a presidente da ABL, Ana Maria Machado:
– É uma perda de tempo e esforço. Não falo como presidente da ABL, mas autora. O país tem outras prioridades. Se o objetivo era igualdade de gênero, que se construam creches, para que as mulheres possam trabalhar e ter independência econômica. Que sejam então proibidos nomes como "Juraci" e "Alcione", que a gente nunca sabe se é homem ou mulher.
Ela não se lembrou de nomes como Agar, Alair, Eli, Ideli, Íris, Lair, Lemir, Naomi e Sadi. Analistas como Ana Maria parecem acreditar que a lei se refere também a substantivos de gênero único, se houver algum na área acadêmica. Mas ninguém receberá diploma com título de "apóstola", "carrasca", "estudanta" e coisas assim, embora haja o feminino de "bacharel", o esdrúxulo e pouco usado "bacharela". Para tal perspectiva, se "presidenta" tem sustentação na tradição do idioma, presidentes "criativos" poderiam muito bem reivindicar o título de "presidento".
Exagero
Manoel Mourivaldo, da USP, considera esse tipo de objeção apenas um exagero.
– A lei vale para as palavras biformes, como "doutor(a)", "mestre(a)", "médico(a)", "administrador(a)", "psicólogo(a)", que têm o mesmo radical ou base, com uma forma para o masculino e outra, com a flexão, para o feminino. Não vale, no entanto, para as palavras uniformes ou comuns de dois gêneros, como "dentista" e "motorista". Nesses casos, a distinção do gênero fica por conta do artigo ou adjetivo: o/a dentista, bom/boa gerente - explica o professor.
Lílian Ghiuro Passarelli, do departamento de português da PUC-SP, reitera que a lei é restrita a diplomas.
– Ninguém vai inventar palavra nova para seguir a lei. Muda apenas, na escrita dos diplomas, o registro da profissão, isso se a língua prevê a forma feminina. Outra obviedade, mas que vale a pena ser dita: quem manda na língua é o povo. Essas duas perspectivas implicam que, como lei, terá de constar nos diplomas a flexão de gênero para nomear profissão ou grau do recém-graduado. Mas como a língua é do povo, afora essas situações formais, o povo continuará usando como preferir, flexionando ou não - diz a professora.
Mesmo assim, Bechara desconfia do resultado.
– Espero que essa lei seja tão desobedecida quanto a baixada em meados do século passado pelo presidente Juscelino Kubitschek, obrigando ao uso do feminino nos cargos de repartições públicas e que acabou não pegando - diz Bechara.
Desconfiança
De todo modo, que mal há em que uma mulher receba o título oficial, registrado no diploma, de "doutora" em vez de "doutor"? Ou de "mestra" em vez de "mestre"?
– Quem quiser encontrar motivos para criticar a lei tem somente a opção de acusá-la de ser óbvia. Mas ser óbvio, às vezes, é necessário. Parece ser o caso dessa lei, que, talvez sem querer, tenha nos mostrado o processo ideal para o surgimento de toda e qualquer lei: primeiro, observa-se o fato que é da prática cultural de uma sociedade, considerando seus valores e não valores morais e éticos, para depois, pela escrita, torná-lo válido juridicamente - retruca Manoel Mourivaldo, da USP.
Se depender de linguistas como ele, não há motivo para estranhar a lei. Desde que a flexão de gênero se limite a palavras consagradas, como "doutora", "mestra", "médica", "engenheira" e outras já consolidadas ou que venham a incorporar-se à língua, não há razão para choradeiras.
(Colaboraram Marcos Gomes e Josué Machado)
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